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ANEPCP INDICA [Em defesa do Estado social]: ‘Auxílio Brasil é Bolsa Família de roupa velha’ (Flávio Cireno)

 
19/11/2021
 
Atualizado em
22/03/2022

O Comitê Temático sobre o Programa Bolsa Família na ANEPCP vem apresentando sugestões e contribuições em defesa do Estado Social no Brasil.

Nesta semana, o Comitê indica a leitura do artigo “Auxílio Brasil é Bolsa Família de roupa velha” de autoria do Prof. Flavio Cireno, Professor do mestrado em monitoramento e avaliação na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e membro do Conselho Consultivo da Associação Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão do Campo de Públicas (Anepcp).

O artigo foi publicado em 16/11/2021 na Folha de São Paulo e pode ser acessado a seguir:

 

TEXTO:

Auxílio Brasil é Bolsa Família de roupa velha

Programa tem remendos evidentes, feitos com o pior da política brasileira

16.nov.2021 às 9h00

Flavio Cireno

(Professor do mestrado em monitoramento e avaliação na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e membro do Conselho Consultivo da Associação Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão do Campo de Públicas  – Anepcp)

 

Quando recauchutam uma política pública, sem mudar o seu essencial, mas lhe dando outro nome e fazendo mudanças incrementais parciais, geralmente se diz que ela está “de roupa nova”. Para dar um exemplo, o primo mexicano do Bolsa Família nasceu como Progresa, já foi Oportunidades e Prospera. Governos mudam o nome para associar programas à sua marca e geralmente enfraquecer a marca associada a seus competidores.

Desde que nasceu, em 2004, o Bolsa Família não mudou de nome, em parte porque passou de 2004 a 2016 sob o governo do partido que o criou. Sob Temer, o nome foi mantido, mas o governo passou a alegar —de forma falaciosa— que só agora o Bolsa Família estava sendo “bem administrado”. Mas, apesar de anúncios de instauração de “pentes finos” e que tais (que, na realidade, já aconteciam desde 2005), a metodologia, os batimentos, as portarias e toda a estrutura do programa permaneceram exatamente os mesmos. Também eram os mesmos o primeiro e segundo escalões do Bolsa Família, formados por profissionais de carreira, em geral gestores públicos, como acontecia desde 2004. Nesse tempo, foi decidido que “a roupa” não precisava de mudanças, só de um ferro de passar, e estava tudo bem.

A partir do início do governo Bolsonaro, porém, o programa ficou sob constante ameaça, com a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania, o nome formal do programa, sendo colocada na mão de pessoas sem experiência na área. O atual secretário, por exemplo, é um pastor protestante, que chegou lá por questões políticas, para atender à base evangélica da Bahia.

Por outro lado, com a pandemia, ao implementar o auxílio emergencial, o governo Bolsonaro trouxe à superfície um grupo que não tinha tanta visibilidade na assistência social1: aquele dos “por conta própria”, que vivem de ocupações informais e bicos e/ou pulando entre empregos que não costumam ter registro em carteira no setor de serviços, tais como garçons, guias turísticos, marceneiros, encanadores etc. Esses trabalhadores têm um problema grave em seu dia a dia: suas profissões sofrem de forte sazonalidade, e, embora consigam ficar acima da linha de pobreza, não têm renda suficiente para se afastar completamente dela e nem para fazer poupança. São as pessoas de baixa renda, mas que estão acima da linha de meio salário mínimo per capita. A partir daí, batizando esse grupo de “invisíveis”, o governo Bolsonaro decidiu que o programa que substituiria o Bolsa Família, o Auxílio Brasil atingiria a esses brasileiros.

Mas, como dizem, “na prática a teoria é outra”. Antes da pandemia, o hiato de pobreza, que é a quantia necessária para tirar todas as pessoas dessa condição, considerando a linha do Banco Mundial para países de renda média-alta (US$ 5,50 pessoa/dia), era de algo entre R$ 600 e 700 bilhões. Não sei se esse número foi calculado na pandemia, mas arriscaria a dizer que, se foi, chegou perto de R$ 1 trilhão/ano. Aí começa o drama: o Bolsa Família tem um orçamento de R$ 34 bilhões e, mesmo com o Auxílio Emergencial de R$ 600 que custou em 2020 mais de R$ 300 bilhões para atender a população por apenas metade do ano. Mesmo assim, 4,5% dos brasileiros ainda permaneceram na pobreza.

Para tentar ajeitar a roupa, esticaram e encolheram o desenho do Auxílio Brasil. Aqui, vamos nos concentrar apenas no financiamento do programa, deixando as condicionalidades de lado, uma vez que já há bons artigos escritos sobre isso2. A conclusão é que a roupa não cabe. Decidiram então “ajustar” a roupa. É jogada fora a ideia de incluir os “invisíveis”, uma vez que não cabem no orçamento do novo programa. Não cabe. Simples assim. Sobra a ideia de zerar a fila do Bolsa Família3 e manter o anúncio do presidente de que o valor médio do benefício seria de R$ 400.

Para isso, decidem pedalar os precatórios, não sem antes deixar também uma graninha para as emendas de relator na Câmara dos Deputados. Isso somente para complementar a verba para zerar a fila, pois, mesmo excluindo os “invisíveis”, o valor do programa aperta e não chega aos R$ 400. Não cabe. Usam mais um remendo na roupa, um artifício da Lei de Responsabilidade Fiscal, segundo o qual é possível atualizar o valor de programas sociais sem incorrer em crime de responsabilidade. O resultado saiu na segunda-feira (8): um decreto, que além de regulamentar o programa, atualiza as linhas de extrema pobreza e pobreza, que eram respectivamente de R$ 89 e R$ 178, para R$ 100 e R$ 200. Os aumentos, de 12,4%, só cobrem parte da inflação no período, mas, se fossem integralmente atualizados, a fila aumentaria, e o programa ficaria mais caro. Não cabe. O dinheiro não dá, mesmo com o drible da Lei de Responsabilidade Fiscal. Mesmo com a pedalada dos precatórios. Surge então um benefício provisório, que acaba em 31 de dezembro de 2022. Faz-se um arrumado na roupa velha, colocando mais um remendo para que ela caiba, e que depende da vontade política do Executivo e da aprovação do Congresso para ser mantido em 2023.

O Bolsa Família não está de roupa nova. Está com uma roupa velha, com remendos evidentes. Como será mantido? Não se sabe. É provável que mais coisas deem errado. Com uma série de remendos frágeis e mal montados, o Bolsa Família tem uma roupa velha, remendada com o pior da política brasileira.