Campo de Públicas: algumas considerações sobre seu significado, sobre sua importância e sobre as dificuldades para sua consolidação[i]
Valdemir Pires[ii]
“Campo de Públicas” é uma expressão que, nos últimos anos (mormente após a Audiência Pública do CNE/CES realizada, em Brasília, no dia 05 de abril de 2010), se tornou corrente entre professores, alunos e coordenadores de cursos de graduação em Administração Pública, Políticas Públicas, Gestão Pública, Gestão de Políticas Públicas e Gestão Social, consagrando-se na “Carta de Balneário Camboriú”[iii], referindo-se a um campo multidisciplinar de formação superior, de pesquisa e de atuação profissional, relacionado à produção, difusão e aplicação de conhecimentos destinados a qualificar técnica e cientificamente a atuação de entes e órgãos governamentais, organizações públicas e do terceiro setor e empresas privadas, no seu relacionamento com os poderes públicos.
Desde a mencionada audiência pública, professores, alunos e coordenadores participantes do Campo de Públicas militam em defesa de Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) próprias para seus cursos, considerados em conjunto, com a finalidade de diferenciá-los dos cursos de Administração ou de Administração de Empresas e, fundamentalmente, de propiciar condições adequadas à existência de projetos pedagógicos favoráveis à necessária formação multidisciplinar e lastreada em valores democráticos e republicanos.
Os defensores da configuração e consolidação de um Campo de Públicas a partir dos cursos de graduação mencionados, que se multiplicaram no Brasil nos últimos anos[iv], compreendem que ele representará um passo importante para se avançar em várias direções, a saber:
– proximidade e mútuo reconhecimento dos cursos do campo, em sua diversidade curricular, decorrente das distintas opções teórico-metodológicas e das diferenças regionais existentes, gerando um debate enriquecedor para o avanço qualitativo da formação dos egressos e para o foco de atenção das instituições de ensino superior envolvidas com a oferta dos cursos;
– adoção dos princípios democráticos e republicanos como elementos valorativos da formação nos cursos do campo, devido à importância que eles têm para assegurar a atuação profissional necessária aos avanços de que carece a administração pública brasileira, em todos os níveis;
– configuração de uma visão comum e pactuada de qualidade dos projetos pedagógicos e de seus resultados e impactos, para a correta e impulsionadora avaliação dos cursos do campo, nos momentos formalmente previstos para que ela ocorra, por exigência das respectivas instituições de ensino superior e dos órgãos governamentais reguladores deste nível de ensino;
– identificação de tópicos e temas de interesse comum para a formação propiciada pelos diferentes cursos, a serem aprofundados a partir de incentivos à produção bibliográfica e à investigação científica, hoje excessivamente lacônica no país; decorre daí a necessidade e importância de uma articulação futura para que novos programas de pós-graduação sejam criados no Campo de Públicas, visando à formação de quadros e à produção científica que considere a realidade nacional;
– proximidade entre os cursos de graduação do Campo de Públicas e os entes e órgãos da administração pública, nos três níveis da federação, a fim de que os projetos pedagógicos respondam às demandas concretas dos governos e, ao mesmo tempo, estas demandas propiciem empregabilidade aos egressos, dentro da legalidade e impessoalidade, mas de modo a aproveitar o diferencial agregado aos que se dedicaram ao estudo dos fazeres político-administrativos com que se deparam, concretamente, os gestores públicos;
– diálogo entre os cursos de graduação do Campo de Públicas e os entes e órgãos da administração pública para a viabilização — conjuntamente, se possível — de cursos de especialização que respondam às necessidades emergentes para a modernização e reformas, que se impõem de tempos em tempos, nas rotinas, métodos, procedimentos e sistemas governamentais; por este caminho, pode se tornar possível e menos custoso assegurar a almejada formação continuada dos gestores públicos, inclusive utilizando-a para a progressão nas carreiras, de forma não burocrática, mas efetiva;
– constantes debates, envolvendo a academia e a gestão pública, a respeito de temas inovadores e problemas estruturais e conjunturais que afetam o relacionamento Estado-sociedade, as condições de governabilidade e a oferta de políticas públicas e serviços públicos; neste tocante, há que se destacar a necessidade de relacionamento pró-ativo entre as instituições universitárias que oferecem os cursos do Campo de Públicas e as entidades governamentais, dos diferentes níveis de governo, também focadas na formação dos servidores públicos (que se multiplicaram e se qualificaram nos últimos anos, com a ajuda de indivíduos da academia, mas sem uma relação institucional com ela);
– busca conjunta (governos e academia) de mecanismos e formas de seleção de funcionários públicos que priorizem o mérito, de fato, e não o simples preparo para responder provas que, em geral, não exigem capacitações que correspondem às necessidades atuais de agentes governamentais críticos, criativos, inovadores, empreendedores e capazes de lidar com incertezas, instabilidades e mudanças constantes, típicas de sociedades, mercados e, portanto, governos, em transformação[v];
Como existe uma incompreensão do que seja o Campo de Públicas, além de pouca clareza a respeito da distinção existente entre os cursos que o compõe e os cursos voltados à formação de gestores e administradores de organizações privadas, um obstáculo que se coloca à formalização e reconhecimento do campo e à empregabilidade dos seus egressos (vez por outra impedidos por razões de registro profissional) é a contrariedade de alguns grupos acadêmicos e corporativos para que isto ocorra. Neste tocante, há uma luta a se travar, que não pertence à academia, mas aos egressos e governos. Entretanto, cabe à academia lançar luzes sobre este debate, uma vez que ele é de natureza teórico-científica: há que se esclarecer de que modo um campo de conhecimento se autonomiza por meio de um conjunto de conceitos e de uma epistemologia próprios, demandando abordagens e metodologias de investigação e implementação de conhecimento específicos. E, no caso do Campo de Públicas, há que se chegar a este esclarecimento com a dificuldade adicional das barreiras pouco nítidas existentes, em vários aspectos, entre Administração e Administração Pública.
Não é apenas a oposição de setores não simpáticos à existência do Campo de Públicas que dificulta seu rápido crescimento orgânico e seu fortalecimento, claramente benéfico ao avanço do conhecimento autóctone e, ao mesmo tempo, cosmopolita, da área. Há também a falta de experiência dos órgãos reguladores do ensino superior, das universidades/faculdades e das entidades de fiscalização profissional para lidar com esta novidade: a emergência de uma área de formação que não gera um profissional nos moldes tradicionais, mas um artífice para fazeres transdisciplinares que deve ser altamente influenciado por valores, sem os quais todo conhecimento estará fadado ao malogro. Existe, ainda, a condição atual do próprio Campo de Públicas, que é a de um amontoado de experiências e agentes diferenciados, que há pouco estão se conhecendo mutuamente, embora a partir de um núcleo dinâmico muito determinado e ciente de seus objetivos e dos resultados esperados.
Oportuno acrescentar que os acontecimentos políticos recentes no país (manifestações de rua que afrontam todos os governos e o conjunto da administração pública brasileira, desafiando-os a mudar o padrão de relacionamento com os cidadãos/eleitores/contribuintes e a elevar a qualidade dos bens e serviços públicos) tornam ainda mais necessárias e oportunas as articulações para a configuração e consolidação de um Campo de Públicas, devido à suas potenciais contribuições técnicas e científicas para que soluções políticas democráticas e republicanas sejam encontradas para os inúmeros problemas que estão explodindo no asfalto das pequenas (muitas), médias (poucas) e grandes (pouquíssimas) cidades brasileiras.
Araraquara SP, 11 de julho de 2013
[i] Considerações dirigidas ao 12º. ENEAP e ao X Fórum de Professores e Coordenadores dos Cursos do Campo de Públicas.
[ii] Economista, professor de Finanças Públicas e de Administração Financeira e Orçamentária Pública e ex-Coordenador do Curso de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista (UNESP)/Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara SP, militante do “Campo de Públicas”.
[iii] Disponível em http://campodepublicas.files.wordpress.com/2012/11/acarta-de-bal_-camboriufimagostovpf.pdf
[iv] A respeito, ver Parecer CNE/CES nº 266/2010.